Comemorações 25 Abril74

GONÇALO SALVATERRA, estudante

Não deixemos fugir Abril!

Caros amigos, o meu nome é Gonçalo, tenho 22 anos, nasci em 1992, 18 anos depois da revolução de Abril, um dos acontecimentos – se não o mais importante- da história contemporânea portuguesa. Uma revolução que pela forma como foi feita impressiona os cientistas políticos, historiadores, estrategas entre outros. Uma revolução que ocorreu quase que por milagre com menos de uma dezena de mortes. Em curtos parágrafos, venho expor aqui a minha visão sobre o mais bonito feito português.

Nos últimos tempos, a revolução de Abril tem vindo a ser discutida nos meios mediáticos, coisa normal tendo em conta que celebra 40 anos, o que já não acho normal é um certo aproveitamento político que algumas forças fazem dela. Fica bem a qualquer “democrata” que se preze, defender os valores de abril. Bem, pelo menos nas palavras, porque nas atitudes manifestadas ao longo destes 40 anos, conseguimos perceber, quem está e quem não está com Abril. O memorando da Troika, esse, com certeza não está com Abril, se é que me entendem. Esta agitação mediática, também motiva muita conversa de café. A minha escola (Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas) não foge à regra. Os que parecem mais interessar-se por este assunto são os estudantes de ciência política, muitos dos quais insistem que o fascismo português não existiu, mas sim um regime autoritário moderado ou que a revolução não se tratou, de facto, de uma revolução mas sim de um golpe de estado. Isto para mim é difícil de aceitar, pensemos que professores lhes dão aulas, e rapidamente chegaremos a uma conclusão, afinal de contas – e por muito que me custe admitir- a minha escola ainda tem alguma tradição de “24”, era ela chamada de  Instituto Superior de Estudos Ultramarinos. Mas pronto, isto tudo são apenas deambulações, por vezes frustradas.

Há uns tempos, enquanto via um documentário do realizador Rui Simões, Bom Povo Português, pensava em como teria sido bom ter vivido a época da revolução, o sentimento do PREC, onde o povo, embebido em poder merecido, conquistou com sucessivas lutas os direitos que vim a usufruir ao longo da minha curta vida. Mas agora que penso nisso, roubo a ideia do filme Meia-noite em Paris de Woody Allen. Não podemos viver na golden age, em que a ideia de um passado melhor nos impossibilita de viver o presente, e o meu presente são os valores de Abril, e se agora tenho 22 anos, é com a energia de um jovem que tenho que lutar pelas lutas presentes, manter os valores de Abril que tantos nos tentam roubar.

Eu tive a sorte de poder ter uma educação, sou um privilegiado, pois saímos do fascismo com uma taxa de analfabetismo na orla dos 26%, hoje a taxa é de 5.23%, um feito de Abril, mas muito ainda há para transformar. Os sucessivos ataques à Constituição de ‘76 feitos em sete revisões, fizeram com que, hoje tenha que trabalhar para poder estudar, mas continuo a ser um privilegiado, tenho trabalho, pois há aqueles que não podem estudar por condições económicas, e aqueles que também não conseguem usufruir de um serviço nacional de saúde gratuito e de qualidade e ainda aqueles que nem a uma habitação têm direito, esta é a luta presente, e se vivo agora, é agora que tenho que lutar para no futuro de Portugal mantermos bem presentes e vivos os valores de Abril.

LUÍS TAVARES, filósofo e artista plástico
25 de Abril de 1974: Recordações de um adulto de quando era criança e também recordou.

Num texto escrito a quente, só posso dizer uma ou duas coisas que me impressionaram de maneira inexplicável, mas anunciando qualquer coisa de absolutamente novo que iria ou estava a acontecer, apesar dos meus tenros 11 anos de idade. Foi assim, resumindo esse dia. De manhã acordei com os gritos dos meus colegas e amigos vizinhos da minha idade do largo que cruzava a Rua do Zaire, onde morava, com a rua da Guiné, no antigo Bairro das Colónias. Mas um desses gritos ou sinais codificados que emitíamos para nos comunicarmos à maneira de sons de Tarzan, em vez de telemóveis, vinham de súbito de um dos meus amigos, o Paulo Rocha – que atravessava o largo no cruzamento daquelas duas ruas – qual Obélix e seu grande pedregulho maior do que ele. Esse “pedregulho” era nem mais nem menos que um enorme pacote de pão embrulhado em papel próprio para o efeito com uma cor de atijolada.

Ele atravessava nesse momento o largo quando assomei à janela do meu quarto e abri de imediato a janela para saber o que se passava. Do outro lado da rua acenava da varanda do seu terceiro andar um outro amigo, o Luís Leal, com os tais gritos de código. É então que, acto contínuo, volto a olhar para o “Obélix”. Nesse preciso momento ele diz-me estas palavras que, não sei bem porquê, me arrepiam ainda como uma revelação quando as recordo: “Não há aulas, vai haver uma Revolução”. Aquele enorme embrulho era um sinal que curiosamente me fez pensar, ou supor, qualquer coisa. Eram as reservas a que todos naquele momento recorriam como salvaguarda para dias de eventual escassez e privação. Daí as filas na padaria e na mercearia. Aquilo bateu-me não sei como. Como é que com aquela idade eu poderia percepcionar a realidade desse comunicado, dessa transmissão, desse evento? E no entanto, lembro-me que algo se transfigurou em mim. Evidentemente que não poderei omitir o facto bem satisfatório de não haver aulas. Mas qualquer coisa havia mais do que isso. Reentro no quarto, enquanto o outro da varanda acenava, e corro pela casa fora. Passo no quarto de toilette da minha mãe, onde ela prepara a cosmética, própria dos cuidados femininos de uma jovem mulher no começo de mais um dia. Estaco, e repito-lhe as palavras do Rocha (o Obélix): “Não há aulas, vai haver uma Revolução”. Com um ar e um tom de voz sóbrios e apreensivos, ela responde qualquer coisa assim, mantendo-se frente ao espelho: “Nada de brincadeiras, isto é uma coisa muito séria”. Desatei a correr pela casa fora mas mais apreensivo, e contente, claro está, por não haver aulas.

Lembro-me que passadas 1 ou 2 horas vejo o meu pai a meio das escadas deixando-me mantimentos (frangos, mercearias e toda uma série de provisões para o que desse e viesse). Voltando de novo à rua para mais abastecimentos.

Lembro-me também que passava uma corrente de união e cumplicidade mais forte entre todos nós. Depois foi assistir na televisão às primeiras horas e durante o dia ao desenrolar de toda uma série de coisas que eu não percebia bem, ou não percebia mesmo nada. À tarde, deu na televisão um episódio da famosa série da época: Safari. Para descomprimir, com certeza. Mas a sensação do novo, da abertura para qualquer coisa outra, isso é inesquecível. Depois, foi assistir ao cerco do Silva Pais, o chefe da Pide, que morava na Rua de Moçambique, mesmo ali, a 50 metros, com os Chaimites e a multidão estremecendo e enchendo até às paredes toda a rua e querendo assaltar e travar a viatura com paus, já era noite. Depois ainda, o grande primeiro 1º de maio após o 25 de Abril de 1974. Lembro a Avenida Almirante Reis cheia de gente, ao ponto de nos pormos em cima das caixas da electricidade para vermos de alto. Com efeito, a lentidão daquela massa imponente de gente descendo a Avenida, parecia um mar de lava ou magma vulcânica que tudo podia varrer e derreter à sua frente. Tudo aquilo impunha respeito. Todo o que naquele momento se atrevesse a contrariar, a ir na contracorrente daquele inesquecível mar de gente que tinha despertado para qualquer coisa de extraordinário, deixaria de ter ali lugar. Por exemplo, poder falar e cantar, poder dar liberdade à palavra, às palavras que, com elas, toda a força que estava esquecida se abria agora como um mundo pleno de novidades e imprevisibilidades e também como um campo de acção a construir.